Três quartas partes da superfície da Terra estão cobertas por água, em forma de oceanos, mares, lagos e rios. Os demais planetas do nosso sistema solar têm paisagens onde predominam o fogo, os gases ou as rochas e os extremos de temperatura oscilam entre o absurdamente quente e o incrivelmente frio, impossibilitando a presença das grandes extensões de água em estado líquido que temos na Terra.
A fartura de água que encontramos aqui é única, e acabou por definir a relação que os humanos temos com a Natureza. O oceano é nossa mãe, a fonte de todas as formas de vida. Se reconstruíssemos a árvore genealógica da vida, remontando-nos sucessivamente geração após geração até muito além da existência do ser humano, chegaríamos aos primeiros organismos unicelulares, que se originaram justamente no mar.
A vida que palpita hoje em nossas células é a continuação do processo evolutivo que começou na água. Cada corpo humano, com seus tecidos e células, está feito de água na mesma concentração salina dos mares onde nasceu a vida.
Assim, por essa curiosa conjunção de fatores, nascemos humanos. E, muitos de nós, nascemos igualmente à beira dos oceanos, olhando para o horizonte, infinito e sedutor que, ora nos chama, ora nos assusta.
Espiritualidade e surf.
Dessa proximidade natural do homem com o mar surgiram várias formas diferentes de se relacionar com ele. O mar é fonte de alimento, caminho para viagens, lugar de reflexão e fonte de prazer. Estas duas últimas maneiras de olhar para ele são as que deram lugar a atividades como o surf.
Originalmente, ele era um exercício de reflexão que fazia parte da espiritualidade do povo polinésio. O surf pode ser visto, mais além do esporte em que se transformou atualmente, numa meditação em movimento com a qual ainda hoje podemos aprender muito sobre a arte de existir.
O surfista que se movimenta em perfeita harmonia com a onda entra na dança do universo, integra-se à Unidade, dissolvendo as fronteiras entre si mesmo e os elementos da criação. O tempo pára, as forças e leis da mãe natureza interagem sobre cada célula do ser, da prancha, da água, da luz...
O surf, e principalmente o fato de entrar no tubo - o momento em que o surfista fica totalmente coberto, envelopado pela água em movimento, o que reproduz a volta à matriz, ao útero, à condição intemporal - desperta-nos o eco mais profundo desta relação atávica com o oceano como fonte da vida.
O surf, para a civilização polinésia, era um ritual onde se repetia a viagem ao desconhecido, ao mundo enigmático e insondável que nos espreita desde o mar. Pode, ainda hoje, ser assim considerado. Na iminência do drop*, situado frente ao vazio, o surfista atento encontra o significado da própria existência, de uma maneira muito similar à que o Yoga nos propõe.
O surfista primitivo, nu e sozinho perante o oceano, transforma-se através do seu contato com ele, que simboliza o poder da vida contido no inconsciente. No topo da onda, frente ao abismo, cresce no contato corpo-a-corpo com as forças da Natureza, às quais está indissoluvelmente ligado e das quais faz parte.
Esse mergulho, essa entrega ao mar, renova o paradigma do herói mítico que se transfigura ao longo da jornada e torna o surfista, um yogi. Quem sentiu o tempo parar, e a unidade entre as forças da natureza e as próprias ao cortar uma muralha de água em movimento compreende isto perfeitamente.
Surf e Yoga.
Surf e Yoga têm tudo a ver. O surf pode ser visto como uma prolongação da prática de Yoga e o Yoga como um complemento natural do surf, ou viceversa. Quando feito com a atitude correta, com o que o estudioso Georg Feuerstein chama de "pensamentoyogue aplicado", o surf pode ser considerado uma forma de Karma Yoga, o Yoga da ação consciente.
Karma Yoga é fazer as ações de maneira conscienciosa, estando atentos ao fato de que, embora tenhamos o direito de escolher o quê fazemos, não temos direito a manipular nem temos direito a escolher os resultados das nossas ações.
Isso significa que podemos planejar e controlar o que fazemos, o como, o quanto e o quando mas, uma vez que as ações tiverem sido feitas, não podemos escolher ou modificar os frutos que retornam para nós a partir delas.
Assim, a atitude do karmayogi é a da aceitação pacífica desses resultados, independentemente de se eles coincidam ou não com nossas expectativas ou desejos. Isso é o que faz das ações cotidianas uma prática de Yoga.
Por outro lado, o surf nos ensina a ficar mais relaxados e a não levar nossas responsabilidades ou a vida em geral demasiado a sério. Muitas vezes, uma boa sessão de surf em plena quarta-feira é muito mais produtiva que quatro horas na frente do computador.
Assim, sou partidário do que chamo bom-senso vital: se quisermos manter a sanidade mental e a felicidade no cotidiano, talvez seja melhor viver em paz, fazendo paradas ao longo do caminho que nos permitam desfrutar da jornada, bem como chegar tranquilos e descansados na meta. नमस्ते Namaste!
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* Drop é o momento em que o surfista, acelerando a prancha remando com os braços, fica em pé sobre ela dando um salto, para entrar na onda.
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Publicado originalmente na revista Yoga Journal: www.yogajournal.com.br.
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